*Coluna Aletéia Lopes – 14/11/2021
Um dos grandes desafios para as empresas familiares brasileiras no cenário atual está no paradoxo entre compreender como se utilizar do capital intelectual na gestão das organizações e ao mesmo tempo superar conflitos internos gerados pelos laços emocionais que envolvem a relação família e empresa. Como garantir a continuidade desse negócio ao longo das gerações dentro de uma forma profissionalizada?
Neste cenário de mudanças os papéis na família e na empresa podem se tornar confusos onde as pressões da empresa podem sobrecarregar e destruir relacionamentos familiares. Consequentemente quanto menor for o nível de profissionalização de uma empresa familiar, sem um processo de sucessão planejado, maior será seu risco de desaparecer.
Portanto, a grande questão não gira somente em torno das transformações no mundo do trabalho e nem tão pouco nas adaptações e rearranjos que precisam ser realizados nas empresas familiares. É antes de tudo entender dentro de uma abordagem sistêmica como a família se organiza e se auto define, produzindo e reproduzindo valores, modelos de comportamento e formas de organização.
A questão do processo de profissionalização das empresas familiares necessita ser examinada a partir da interseção existente entre as dimensões família e empresa. Onde algumas variáveis exercem influência, dentre elas: a questão de gênero, os papéis e limites, as lealdades invisíveis, ou seja, a necessidade de se respeitar e se acolher as diferenças humanas. Osório e Valle (2009), explicam que: “não levar em conta os fatores emocionais presentes na interface entre a família e a empresa talvez explique porque menos de um terço das empresas familiares sobrevive à passagem da primeira para a segunda geração”.
Apesar de que família e empresa possuem obviamente áreas compartilhadas onde a sucessão e a herança se produzem, é importante que tenham espaços próprios, onde preservem a identidade e ambas saiam acrescentadas e não escravizadas. Afinal, a empresa familiar nasce da família e dentro de um processo de individuação adquire sua própria identidade.
Portanto, para que o processo de individuação da família empresária possa ser resguardado, evitando assim possíveis conflitos, faz-se necessário o desenvolvimento de um processo de profissionalização da dimensão família e isso se da através de uma boa prática de governança familiar através da criação de modernos instrumentos de gestão, são eles: a implantação do Conselho de Família, a constituição de um escritório de família, ou Family Office, além da construção de um Protocolo Familiar.
O Conselho de Família não integra o sistema de gestão da empresa, como é o caso do conselho de administração, mas tem o propósito de organizar as expectativas da família em relação a sociedade e a gestão da empresa. É, portanto, um instrumento de governança que tem como um dos objetivos fundamentais, garantir o acompanhamento e a continuidade da empresa nas mãos da família proprietária. Onde mesmo sem poder de voto ou de veto, funciona como um órgão que faz a gestão da convivência familiar agindo preventivamente através de um trabalho de conscientização, informação e formação.
Portanto, é essencial entender que o Conselho de Família vai além do simples acompanhamento da gestão dos ativos familiares na verdade seu principal papel é administrar os aspectos intangíveis da família, tais como: fomentar o treinamento das novas gerações, manter os valores e a missão da família integrada ao plano estratégico da empresa e apoiar as decisões da família com imparcialidade.
Sobre o Family Office ou Escritório de Família segundo Rosane Dal Magro (2006), “Ainda novo no Brasil, o conceito de escritório da família ou “family office” já é utilizado há muito tempo pelas famílias empresárias americanas e européias. Estima-se, inclusive, que as origens na Europa, tanto do “Trust” como Escritório de Família vêm da época das cruzadas. Nesse período os “Lords” saiam em busca de novas conquistas e deixavam na sua localidade de origem, pessoas-chave que ficavam responsáveis pela sua família e pelo seu patrimônio. Visando garantir a proteção tanto familiar: de sustento e segurança física; como patrimonial: zelar pelas terras e bens. Atualmente, as famílias empresárias brasileiras estão despertando para este assunto”.
O Escritório da Família tem o papel de facilitador com trânsito nas três esferas: família, patrimônio e empresa, podendo assumir vários formatos. Suas atribuições podem abranger: administração de patrimônio, orientação em trabalhos jurídicos, orientação de novos negócios, aconselhamento em investimentos, suporte para empreendimento de sócios e herdeiros, impostos e seguros, desenvolvimento de sistemas fiscais; ou seja, um centro de prestação de serviço para a família empresária. Portanto, o Escritório da Família tem como objetivo central a criação de um espaço para fóruns de debate, com reuniões regulares para trabalhar as questões familiares e empresariais através de um canal formal de comunicação, que permita os familiares o compartilhamento de ideias, opiniões, aspirações, descontentamentos e preocupações.
Hoje, o êxito de um escritório da família está em estabelecer uma estrutura permeável capaz de permitir um fluxo transparente de informações, primar por uma relação profissionalizada e desenvolver mecanismos que possibilitem a ampliação do patrimônio e a perpetuação da família e seu legado.
O Protocolo Familiar é um acordo consensual entre todos os membros da família (proprietários atuais e futuros), posto por escrito, no qual fixa o que deve ser o guia de conduta da família em relação a empresa e em relação a própria família, onde o mais importante não é o protocolo em si, mas o processo de sua construção do contrato psicológico baseado nos interesses comuns e de manutenção de laços coletivos e de parentesco.
Os encontros para a discussão do Protocolo Familiar são extremamente enriquecedores para as famílias, pois é o momento de terem um fórum específico para compartilharem e acordarem expectativas com relação aos negócios familiares, sentimentos, projetos de vida, perspectivas de ganhos e principalmente uma real possibilidade de compartilhamento das relações. É uma ferramenta de continuidade da empresa familiar, onde acionistas e futuros acionistas agregam seus diferentes pontos de vista e reforçam a cultura organizacional e da família existente.
Através do Protocolo Familiar são criados planos de desenvolvimento de futuros acionistas com regras de entrada e saída de membros da família na gestão dos negócios, estabelecendo uma forma de compromisso com a profissionalização da família através de um código de ética e conduta que engloba: uso da imagem da empresa e do patrimônio, comportamento pessoal, uso de bens e serviços da empresa, relacionamento afetivo da família, dentre outros.
Percebe-se, portanto que profissionalizar a empresa familiar, implantando instrumentos de governança não deve estar associado a ideia de burocratizar ou criar rigorosidade nas dimensões gestão, família e propriedade. É antes de tudo, adequar a cada realidade instrumentos que possam permitir o diálogo tornando-se um grande aliado na solução de possíveis conflitos que possam vir a existir dentro da família em relação ao negócio através do alinhamento das intenções e necessidades individuais.
Portanto, profissionalizar as empresas familiares requer uma postura diferente na construção da confiança no seio familiar, onde a implantação da governança torna-se um trunfo para evitar qualquer tipo de animosidade que possa vir a existir entre sócios e futuros sócios. Afinal a empresa familiar é um organismo vivo que por questão de sobrevivência precisa pensar além dos resultados tangíveis; sua perenidade esta intimamente ligada ao compartilhamento e a geração de valores intangíveis entre as diversas gerações.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do ENB.